sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

UMA MULHER QUE SE AFOGA - MARÍLIA GARCIA


 
coloco a mão sobre o seu joelho
e você me olha de frente
                                   mas depois vira de lado ajeitando o
retrovisor por causa da chuva e eu quero dizer que aquela
frase era de uma canção, a mesma que você tinha usado
em outro lugar, então de novo você me olha
de frente
            e sorri interrogando
minha expressão sempre confusa
e eu queria dizer que na viagem fraquejei
que tenho medo de enlouquecer
que tenho medo do que está
por vir mas acabo contando a história
do homem que perguntava
você me ama?
                        depois de anos casado com a mesma mulher
e ela dizia
                  não
e ele com aquela música repetindo na cabeça
aquela música sem parar tocando
ao fundo ecoando
e ela
            não
e ele perguntava
                                   será que eu sou louco?
perguntava depois que o barco na enseada
ela indo embora, fugindo
eu sou louco?
perguntava depois do acidente, do barco apagando
bajo la lluvia, 24 vezes a mesma carta enviada com o nome dela
e o telefone chamando
na bolsa
            hoje ela me viu na rua e veio contar
o que tinha acontecido: vontade de gritar
vai embora daqui
                                   não quero mais ouvir essa voz
e ela falando sem parar e eu
coloco a mão sobre seu joelho e você
me olha na hora e ela dizendo na rua que
não tinha me reconhecido
antes
            por que então veio falar comigo?
mas não digo só penso e aquele silêncio
e ela dizendo que foi
por acaso
            tudo bem
                        de agora em diante
e eu pensando não me lembro o que dizer
nessas horas, não suporto, será que um dia?,
e você coloca a mão sobre o meu joelho e eu
olho para você de frente, ainda ouvindo canção
pergunta gritos de
afogamento
                        será que eu sou louco?
e digo que você é uma das poucas
pessoas que quero que fiquem aqui
e você me responde
nunca sonhei em conhecer alguém
como você
e eu olho de volta e digo
                                   você sabe que ninguém nunca
segurou minha mão assim?
você vira de lado ajeitando
o retrovisor e se projeta pra ultrapassar
o carro da frente.

OBITUÁRIO LITERÁRIO COM FIGURAS DE GATOS E RATOS - FABIANO CALIXTO



os ratos roeram a vida dos poetas
– livres do peso das letras, os estetas

em outras esferas escreverão, pois,
no cavo, vácuo profundo, sem voz, à foice

(esta persiana a zerar o ar dos distraídos),
não mais poemas, já que lidos os labirintos,

nada mais resta, nada, nem a quem se
amar ou refutar, não esfria, nem aquece,

a luta com palavras já não faz parte de
paixões ou razões puras, nenhum alarde,

nada de metáforas, nenhuma metonímia
– a menina de lá não dá mesmo a mínima.

os ratos, rudes e arrogantes orates,
gorjeiam na goela os corpos dos vates

e, ainda assim, nas estantes, talhados,
ficam os poemas – como nos telhados

gatos de gostos e colmilhos afiados, à leitura
nasal do rastro dos ratos, vigiam venturas.

de um pulo a outro salto, uma gangue
de gatos retalha a noite com sangue

de restos de ratos que das tripas, as tropas
de versos, vazam as mais soberbas sopas.

PENÉLOPE - ANA MARTINS MARQUES




I

O que o dia tece,
a noite esquece.
O que o dia traça;

a noite esgarça.
De dia, tramas,
de noite, traças.
De dia, sedas,
de noite, perdas.
De dia, malhas,
de noite, falhas.

II

A trama do dia
na urdidura da noite
ou a trama da noite
na urdidura do dia
enquanto teço:

a fidelidade por um fio.

III

De dia dedais.
Na noite ninguém.

IV

E ela não disse
já não te pertenço
há muito entreguei meu coração ao sossego
enquanto seu coração balançava em viagem
enquanto eu me consumia
entre os panos da noite
você percorria distâncias insuspeitadas
corpos encantados de mulheres com cujas línguas
estranhas eu poderia tecer uma mortalha
da nossa língua comum.
E ela não disse
no início ainda pensei em você
primeiro como quem arde diante de uma fogueira
apenas extinta

depois como quem visita em lembrança a praia da infância
e então como quem recorda o amplo verão
e depois como quem esquece;

E ela também não disse
a solidão pode ter muitas formas,
tantas quantas são as terras estrangeiras,
e ela é sempre hospitaleira.

V

A viagem pela espera
é sem retorno.
Quantas vezes a noite teceu
a mortalha do dia.
quantas vezes o dia
desteceu sua mortalha?
Quantas vezes ensaiei o retorno —
o rito dos risos,
espelho tenro, cabelos trançados,
casa salgada, coração veloz?
A espera é a flor que eu consigo.
Água do mar, vinho tinto — o mesmo copo.

VI

E então se sentam
lado a lado
para que ela lhe narre
a odisseia da espera.

VERSO OCIOSO - ALFREDO FRESSIA

 
Combino con distancia y con recuerdo,
existo poco y mal en el presente.
Vengo de lejos, pero sólo en sueños,
de cerca mi presencia se disuelve.

El sol que me ilumina es de topacio,
y en mi carta la luna es de papel
en áspero cuadrado con el astro
más opaco: mis tonos son pastel.

Escribo versos en endecasílabos
los días lluviosos (como es hoy) y llego
casi al presente donde me deslizo
recto hacia atrás en busca de sosiego.

Visto de cerca yo me desvanezco.
¿Música en mí? Sólo de las esferas.
Por la línea del tiempo huyo del duelo
de ese abismo en el hoy que nos acecha.

Lo aprendí en el camino del exilio:
duele el país real de la memoria
y nace como un hongo en otro sitio,
envenenado y que también acosa.

Y por eso hoy combino con distancia.
Cuando casi estoy vivo casi muero,
y casi escribo, torpe de añoranza,
un verso ocioso, ausente y con defectos.

A TRISTEZA - ADROALDO BARBOSA





A tristeza brincou comigo
durante um bom tempo,
fez-me carregar pedras nos ombros
como seu prisioneiro
e ziguezaguear
como turista
entre os próprios sentimentos.
A tristeza!
A tristeza chegou a ser,
durante um bom tempo,
a única certeza
em uma série de eventos
que não compreendia.
Acabou tornando-se Afrodite
e eu me conformando
com sua companhia,
me entreguei,
tornado-me
seu alimento.
A tristeza pisou nas tábuas
da minha Igreja
e, não é exagero,
quando digo resoluto
que transformou
o que era sonho
em pesadelo.
A tristeza se perdeu entre meus cabelos,
abriu um buraco no meu peito
e apoderou-se do meu coração,
roubou o ar
dos meus pulmões
e comprou minha saúde
com notas falsas
e moedas de brinquedo.
Levou meus ossos
e só Deus sabe
o que mais
durante todo esse tempo!

Até os ossos...
Ah, exagero!
Se tivesse como, explicava.
Mas,
seria como falar
grego.

A tristeza aos poucos se afasta,
Despede-se
Como se despedem
todas as folhas ao vento.
O que vem pela frente...

Tudo?
Nada?
Tenho medo!
Minh`alma do corpo
anda tão ausente -
Tanto tempo
carregando o mundo inteiro.

Venta
e o vento eu sinto agora
não apenas de vez em quando,
mas,
o tempo inteiro.